O sândalo e o machado e o pastor jubilado
Anos quarenta. Cabelos brancos e os solenes casaco preto e calças listradas – trajes usuais nos homens da geração anterior –, de quando em quando ele aparecia lá em casa nos meus dias de menino. Geralmente com duas grandes valises, pesadas de tanto vidro que traziam: eram quadrinhos simples, feitos com gravuras recolhidas lá e acolá e coladas sobre um fundo branco onde estavam escritas, com normógrafo e lápis crayon, frases bonitas, muitas das quais versículos bíblicos; o contorno era um largo “passe-partout” preto. Ele fora pastor de meus avós e morava então na região serrana do Estado. Jubilado, viajava para visitar antigas ovelhas e, para ajudar na singela aposentadoria, vender os quadrinhos: me lembro da imagem de um deles: uma caravela num mar revolto; do outro, só da legenda: “Seja como o sândalo, que perfuma o machado que o fere”.
Essas imagens sempre se acendem em minha memória para lembrar do cuidado que deve ser dispensado àqueles que se dedicam à pregação do evangelho. É verdade que de um modo geral os novos tempos trouxeram melhor e mais confortável situação para os pastores locais, mais compatível com a dignidade da altíssima missão que desempenham.
Dói-me, no entanto, o coração ver que o mais das vezes não acontece o mesmo com nossos missionários. Não sei por que a igreja, como um todo, não costuma prover o sustento dos missionários em moldes semelhantes aos de seus pastores locais, obrigando aqueles a cavar sua própria manutenção nas muitas comunidades que vão visitando para divulgar o trabalho. A pulverização das fontes de sustento traz o grande desconforto de o missionário normalmente ter de sacrificar as férias no Brasil para visitar em outras cidades as igrejas que o sustentam, a fim de lembrar-lhes que ele ainda está vivo e que ainda está trabalhando. Ademais, acontece por vezes de esse sustento ser suspenso por motivos diversos: um deles é durante o período de férias do missionário, sob a alegação de que a manutenção é só para missionário no campo; outro motivo é porque a igreja local resolveu priorizar construções ou reformas; outro ainda é porque muda o pastor da igreja local, e o novo não tem visão missionária.
Por que isso? Será que, egoisticamente, estamos pensando que missionários são como madeira de sândalo, e que nos comprazemos em ficar perfumados enquanto os ferimos?