GUINÉ-BISSAU: Casamento precoce, problemas em dobroo
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Photo: Mercedes Sayagues/PlusNews |
Adolescentes são forçadas a casar com homens muito mais velhos, assumindo responsabilidades de adultos sem capacidade – física ou psicológica – para tanto |
“Fui torturada e fui parar no hospital de Tite”, conta. “Foi numa das idas ao hospital que fugi. Percorri 100 quilómetros a pé e de canoa até a Ilha de Bolama, onde encontrei um refúgio provisório na missão evangélica local antes de ser enviada para este lar.”
O lar a que Alsan se refere é o Lar Abigail, em Bissau, criado pela igreja evangélica em 2003 depois de uma enxurrada de denúncias referentes ao casamento precoce. A igreja evangélica é hoje a principal instituição de acolhimento de raparigas que fogem da prática.
“Criamos este lar para proteger, educar, formar e reintegrar as meninas vítimas do casamento precoce”, explica o pastor Joaquim Correia, presidente do Conselho Nacional da Igreja Evangélica de Guiné-Bissau.
Segundo Correia, há meninas que, por recusarem o casamento, são submetidas a castigos corporais e até amarradas durante dias, privadas de comer. Algumas chegaram às missões evangélicas com cicatrizes devido aos maus tratos.
Dar crianças de 12, 14 anos em casamento limita a esperança de vida delas. Temos que mudar isso no seio da família. |
“Temos registo de meninas que, depois de casamento com homens mais velhos, começaram a adoecer e foi-lhes diagnosticado o vírus da Sida”, comenta. “Há também casos de meninas que morreram durante o parto.”
Com o corpo ainda em desenvolvimento, as raparigas ainda não têm estrutura física para uma gravidez. Uma das consequências comuns é a fístula, em que os tecidos da bexiga, reto, vagina e útero se rompem, causando perfuração e incontinência urinária e fecal.
Fanta Kassama, da etnia mandinga, hoje com 15 anos, casou-se aos 12 com um homem de 70. “Eu não queria, mas minha mãe seria batida ou expulsa de casa pelo pai, então casei”, conta.
A adolescente deu à luz gémeos malnutridos, condição comum entre mães adolescentes e seus bebés, e passaram meses no centro de recuperação nutricional do hospital de Gabu, no leste do país.
Um meio económico
Esta prática sempre esteve presente no quotidiano de várias etnias majoritárias no país: fula e mandinga (no leste), papel (no centro) e balanta (no sul e no norte).
Mas a crise económica que arrasta-se desde o conflito armado em 1999 é apontada como um dos principais factores para o casamento precoce.
“As famílias não têm esperança de as jovens terem um emprego e não acreditam nas escolas para meninas, porque podem desencaminhá-las”, diz Soico Emballo, de 26 anos, estudante em Gabu.
Vinte por cento das crianças na região de Gabu não vão à escola e 20 por cento vão apenas às madrassas (escolas islâmicas), segundo o governador regional Armando Mamadu Alfa Balde.
Kalifo Djallo, régulo (chefe) do bairro Dobala, em Gabu, também aponta os problemas económicos.
“Com a explosão demográfica, não há escola nem emprego”, explica. “Quem não sabe ler e tem quatro filhas, vai dá-las em casamento. Mulher é mão-de-obra. É um meio económico.”
Lamine Mballo, de 24 anos, é presidente da organização não-governamental juvenil Djoquere-Endam (harmonia, na língua fula) e afirma que a falta de opções para as raparigas é uma das principais razões para o casamento precoce.
Photo: Mercedes Sayagues/PlusNews |
Fanta Kassama e seus gémeos: desnutrição foi apenas um dos problemas enfrentados pela adolescente |
Há também razões culturais por trás da prática. “O casamento precoce é um hábito, não necessariamente ligado à pobreza”, disse o régulo Djallo.
Em muitos casos, a união é acertada entre os pais e o pretendente no nascimento da menina. A partir daí, os pais passam a receber o dote – dinheiro, favores e animais – da família do futuro genro.
“Assim, quando ela começar a formar-se mulher, os pais não têm outra alternativa senão obrigá-la a se casar com o referido homem”, diz o pastor Correia.
Segundo Alahadi Sarifo, régulo do bairro Algodal, em Gabu, muitos pais casam as meninas por medo que a filha seja mãe solteira. “Hoje os filhos não têm medo dos pais, encontram-se na rua e nas festas e engravidam, em vez de casar”, diz.
Djallo não incentiva a população ao casamento precoce: “Dar crianças de 12, 14 anos em casamento limita a esperança de vida delas. Temos que mudar isso no seio da família.”
Idade legal
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alerta contra os casamentos precoces e tem procurado minimizar suas consequências através de ONGs parceiras e estruturas de acolhimento temporário das meninas, segundo João Augusto Mendes, responsável pelo programa de protecção do Unicef-Bissau.
A lei guineense, entretanto, endossa a prática. O Código Civil, elaborado na época colonial mas ainda em vigor, permite o casamento às raparigas a partir dos 14 anos e aos rapazes a partir dos 16.
De acordo com Mendes, o Unicef tem uma proposta de legislação para elevar a idade mínima legal para o casamento para 18 anos, mas que ainda precisa ser aprovada pelo parlamento.
Noivas em fuga |
O casamento precoce ganhou nova dimensão em 2003, com a fuga de um grupo de raparigas balantas, em Quinará, que buscou refúgio num abrigo provisório em Bolama antes de serem transferidas para o Lar Abigail, na capital Bissau. A missão evangélica do pastor Joaquim Correia funciona hoje como um refúgio seguro para raparigas fugidas do casamento precoce – e cada uma delas traz lembranças amargas. N´dela Sana Yala fugiu de Foya, no sul do país, aos 16 anos para evitar um casamento precoce. Hoje com 20 anos, está na oitava classe. “Meu pai queria que eu casasse com o marido da minha tia, um homem mais velho que ele. Eu disse não. Torturaram-me. Fugi e vim parar aqui. Agora só penso em estudar e ter um curso”, conta. Quinta Alberto Té veio de Prábis, perto de Bissau, procurar refúgio na missão evangélica. “Quis continuar a estudar, mas meu pai disse-me que não. Tinha que ir ao casamento. Foi por isso que resolvi fugir da casa e pedir protecção à igreja.” Hoje o Lar Abigail está em processo de legalização para adquirir uma personalidade jurídica e ser habilitado oficialmente para receber as raparigas. Actualmente vivem no lar 16 meninas, a maioria de Quinará. Anualmente o abrigo recebe 10 raparigas fugindo do casamento forçado. |
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